Page 103 - Da Terra
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TEMPERATURA                                                        CIRCO MULETA


 Sei que o vinho está bom para beber quando o provo, tenho provas.   Faço vaga ideia do circo que visitava a aldeia. Era paupérrimo, se comparado com a fortuna burlesca da freguesia. Tinha cães

 Não  rei curso de escanção, sou filarmónico e reles coralista com   amestrados, malabaristas, ilusionistas e um palhaço pobre, o Augusto. Todos os palhaços eram pobres naquele tempo, a despeito
 versos calejados nas palmas das mãos. Se solto os calos, não queira   dos nomes imperiais. A gente anunciava a chegada do circo gritando por um funil da adega: venham ver, venham ver, não pagam

 saber, parecem galos com asas de vento. A gente engaiola muita coisa   nada, é ir e ver. Era um carnaval, havia quem brigasse para assis r ao passar da caravana. Tinha a sua graça, sempre a
 nas mãos, sabe. É preciso abri-las e deixar que delas se libertem os   desorientarem-se uns com os outros. Na aldeia havia uma mulher que cozia pão todos os dias, uma taberna com balcão de pedra
 sonhos. Peça-me uma rima, logo me surgem na ideia os tons, os sons,   onde os penál s eram ba dos sem quebrar - tantas vezes sem cobrar, que o dinheiro era pouco e a taberna fiava. Havia uma

 e  a  pele   nge-se  de  uma  rubra  alegria  vinda  de  séculos  an gos.                 carpideira de serviço com queixumes para troca e venda, havia um  tular no banco da equipa municipal, ainda assim vedeta, rei no
 Já tenho xizes, para que saiba, caso não haja notado, mas ainda   carnaval, primeira fila no Circo Muleta. Havia uma mãe de oito filhos, um fadista i nerante, criadores de mulas que, aos olhos das
 debito o verso próprio como um mosto. Isto é plágio, aviso. Também   crianças, pareciam puro-sangue. E charretes puxadas por cavalos. E Conchita Cintrón, a filha do palhaço, de tal conhecida por se

 o é a uva depois de pisada, desfeita num líquido ainda não poema   assemelhar a Consuelo Verrill, a deusa de ouro que domava touros nas arenas do mundo. Eu venerava Conchita. Sempre que a via a
 mas já poesia, líquido a pedir horas de sono até que a temperatura   caminho da fonte dava uma postura às vacas de meu pai e corria atrás dela. As fontes resultavam naquele tempo, eram dos poucos
 certa permita trasfegá-lo para os tonéis. E ainda que seja igual a uva,   lugares onde as raparigas se apresentavam sozinhas. Um rapaz que pretendesse uma rapariga  nha de ir à fonte. Ir à fonte podia

 será sempre diferente o vinho. Sabia? Agora pergunto-lhe eu: qual a   ser muita coisa. Só se pensava em trabalhar, mais nada. Eu consolava-me a sonhar com Consuelo nos meus braços. As mesas da
 temperatura certa? Há sempre uma medida ideal para as coisas, uma   taberna eram em madeira, tal como as cadeiras. Sobre as mesas jogavam par das de cartas os desempregados do dominó

 conta e um peso com que afinar termómetros para tratar exaltações.   existencial que não arreda pé deste desterro. Só o sangue de um cavalo pode ser puro, o cavalo de um poema que cavalga com
 Não é por acaso que o vinho novo se prova em dia de São Mar nho.          crinas grisalhas ao vento, o cavalo de um livro an go a fazer-nos companhia no  racolo da solidão. Não havia electricidade na
 É  por  honra  aos  mortos,  como  que  fazendo  prova  dessa  vida   aldeia. O meu sangue é o dessas tendas memoráveis, o sangue dos bairros onde os alguidares nunca cobriram o trabalho das facas.
 con nuada que a série ininterrupta e eterna de instantes matura até   É o sangue cínico do rosto triste de Augusto. Não posso lá regressar porque de lá nunca saí, fiquei por aquelas memórias como um

 ao  ponto  ideal  da  degustação.  A  gente  bebe  para  assinar  o   verso pintado nas paredes que alguém se esqueceu de caiar. A aldeia resiste no interior desguarnecido das minhas noites,
 requerimento da existência, é um modo de dizer aos mortos que os   acompanha-me sempre que me deito para ficar durante horas com os olhos colados ao tecto da insónia, a revolutear-me sobre a

 não  esquecemos.  Honra-se  um  morto  vivendo.  A  temperatura           cama como se fosse um espírito inquieto perdido nos túneis do seu covil. Pelo entrudo pichávamos os muros com sá ras
 certa  da  vida  é  a  morte,  a  temperatura  certa  do  vinho  é  a  vida,                  denunciando os podres da terra. Porque era dos poucos que sabia ler e escrever, passei horas às cavalitas de outros escrevendo
 a temperatura certa da vida é o estágio a que damos o nome de   versos feitos na altura, de improviso. Hoje, os livros ardem-me nas mãos, mesmo quando incrustados no vidro glacial da

 tempo, esse grande escultor. Isto também é plágio, desculpe-me.               esperança. Deus arde no imo do gelo, tal como os amantes na sombra da verdade, na sombra da árvore que está no meio do jardim,
 É como lhe disse, honra-se um morto vivendo-o.  a morderem a maçã do pecado e a cuspirem os caroços contra a peçonha das serpentes. Deus é grande, mas a Conchita era maior.
            Dizem que toureava direito por linhas tortas, eram redondas as linhas. Seja eu a linha onde ela escreve direito a tortura que é

            imaginá-la ao lado de Deus.
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